sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Património imaterial

Depois deste sonho que me pareceu tão real, já que tudo isto aconteceu tantas vezes, tenho pensado nestas quatro pessoas. Verdadeiros exemplares de agricultores ribatejanos dos anos sessenta.
A tia F. era azeda. Diziam que era por não ter filhos, mas eu, apesar de achar que a maternidade adoça as mulheres, penso que era mesmo o mau feitiozinho dela. Parece que a estou a ver, de sapatos de couro, meias de algodão canelado, sempre a limpar as mãos ao avental de riscado. Usava óculos de aros dourados, que eu sempre pensei que eram mesmo de ouro, e um carrapito no cucuruto da cabeça mirrada em cima do pescoço comprido, como se fosse uma cabeça de fósforo. Tinha sempre galinhas e galos bem gordos e de boas cores e muitas vezes ouvia "Que rico galo, ó Ti F. Há de dar uma bela canja". " Não o cagas, ó rapaz", respondia ela prontamente. Orgulhava-se de ser uma boa cozinheira e tinha sempre em casa guloseimas que trazia dos casamentos onde trabalhava. "Anda cá ó nina". E eu lá ia, toda contente. Dava-me um bolo e mandava-me logo embora. Chamava ninas e ninos a todas as crianças, porque nem queria ter o trabalho de nos chamar meninas ou meninos. Era uma figuraça.
O Tio J. era um homem que eu nunca vi fazer nada depressa. Tudo pra ele tinha de ser com muita calma. Andar, trabalhar, falar, enrolar o cigarro. Usava barrete e roupa muito escura. Era feio e na boca tinha apenas um dente que mais parecia um menir. Mas quando  sorria, o que era raro, parecia-me até bonito. Era irmão do avô. Nunca vi este casal ter  o mais pequeno gesto de ternura um com o outro.
O avô C. era um pandego. Baixo e gordo, andava sempre a rir e a brincar. Usava colete todos os dias, mesmo que fosse a cavar a vinha. No bolso, sempre, o relógio com corrente de prata. Na cabeça, de verão chapéu e de inverno o barrete. Quando saia, trajava como um verdadeiro camponês e nunca esquecia a bengala.Tinha a porta da adega sempre aberta como se fosse de venda ao publico, sendo que o publico eram os amigos a quem obsequiava com quantos copos eles quisessem.
A avó T. era de poucas falas e pouco riso. Não tinha mãe desde o dia em que nasceu e foi criada aos trambolhões, como ela dizia. Nunca festejava ou falava do dia de aniversário, porque nesse dia lhe tinha morrido a mãe que tanta falta lhe tinha feito. Era uma mulher rude, sem ser áspera. Criou sobrinhos órfãos como se fossem filhos, talvez por lhes conhecer o infortúnio. E todos os sobrinhos em geral gostavam dela. Não era de missas, à exceção do dia 8 de Setembro na capela da Escusa.
Ajudava quem podia, como se fosse uma obrigação. Quando me lembro dela, vejo-a de candeia na mão, de roupa de dormir e cabeleira alva desatada do carrapito que usava durante o dia, quando me compunha a roupa ao deitar ou a por o bacio dentro da mesinha de cabeceira. Ou a abrir o velho baú de onde tirava as mantas com que me tapava. Ou de almotolia na mão, a tirar o azeite da pia de pedra.
Hoje, todos já morreram. E com eles, as casas e quase todos os pertences.
A casa dos tios, foi demolida e os sobrinhos construíram uma nova que ainda não foi vendida.
A dos meu avós, está moribunda,
Agora, o muro e a tangerineira são meus. Também o relógio de bolso do avô agora é meu.
Salvei ainda da morte certa, a pia do azeite, a mesa de cabeceira em madeira e ardósia com, garantidamente, mais de cem anos, o baú e a mesa da cozinha grande que nunca era usada.
E mais do que tudo isto, guardo as minhas memórias.

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