Depois deste sonho que me pareceu tão real, já que tudo isto aconteceu tantas vezes, tenho pensado nestas quatro pessoas. Verdadeiros exemplares de agricultores ribatejanos dos anos sessenta.
A tia F. era azeda. Diziam que era por não ter filhos, mas eu, apesar de achar que a maternidade adoça as mulheres, penso que era mesmo o mau feitiozinho dela. Parece que a estou a ver, de sapatos de couro, meias de algodão canelado, sempre a limpar as mãos ao avental de riscado. Usava óculos de aros dourados, que eu sempre pensei que eram mesmo de ouro, e um carrapito no cucuruto da cabeça mirrada em cima do pescoço comprido, como se fosse uma cabeça de fósforo. Tinha sempre galinhas e galos bem gordos e de boas cores e muitas vezes ouvia "Que rico galo, ó Ti F. Há de dar uma bela canja". " Não o cagas, ó rapaz", respondia ela prontamente. Orgulhava-se de ser uma boa cozinheira e tinha sempre em casa guloseimas que trazia dos casamentos onde trabalhava. "Anda cá ó nina". E eu lá ia, toda contente. Dava-me um bolo e mandava-me logo embora. Chamava ninas e ninos a todas as crianças, porque nem queria ter o trabalho de nos chamar meninas ou meninos. Era uma figuraça.
O Tio J. era um homem que eu nunca vi fazer nada depressa. Tudo pra ele tinha de ser com muita calma. Andar, trabalhar, falar, enrolar o cigarro. Usava barrete e roupa muito escura. Era feio e na boca tinha apenas um dente que mais parecia um menir. Mas quando sorria, o que era raro, parecia-me até bonito. Era irmão do avô. Nunca vi este casal ter o mais pequeno gesto de ternura um com o outro.
O avô C. era um pandego. Baixo e gordo, andava sempre a rir e a brincar. Usava colete todos os dias, mesmo que fosse a cavar a vinha. No bolso, sempre, o relógio com corrente de prata. Na cabeça, de verão chapéu e de inverno o barrete. Quando saia, trajava como um verdadeiro camponês e nunca esquecia a bengala.Tinha a porta da adega sempre aberta como se fosse de venda ao publico, sendo que o publico eram os amigos a quem obsequiava com quantos copos eles quisessem.
A avó T. era de poucas falas e pouco riso. Não tinha mãe desde o dia em que nasceu e foi criada aos trambolhões, como ela dizia. Nunca festejava ou falava do dia de aniversário, porque nesse dia lhe tinha morrido a mãe que tanta falta lhe tinha feito. Era uma mulher rude, sem ser áspera. Criou sobrinhos órfãos como se fossem filhos, talvez por lhes conhecer o infortúnio. E todos os sobrinhos em geral gostavam dela. Não era de missas, à exceção do dia 8 de Setembro na capela da Escusa.
Ajudava quem podia, como se fosse uma obrigação. Quando me lembro dela, vejo-a de candeia na mão, de roupa de dormir e cabeleira alva desatada do carrapito que usava durante o dia, quando me compunha a roupa ao deitar ou a por o bacio dentro da mesinha de cabeceira. Ou a abrir o velho baú de onde tirava as mantas com que me tapava. Ou de almotolia na mão, a tirar o azeite da pia de pedra.
Hoje, todos já morreram. E com eles, as casas e quase todos os pertences.
A casa dos tios, foi demolida e os sobrinhos construíram uma nova que ainda não foi vendida.
A dos meu avós, está moribunda,
Agora, o muro e a tangerineira são meus. Também o relógio de bolso do avô agora é meu.
Salvei ainda da morte certa, a pia do azeite, a mesa de cabeceira em madeira e ardósia com, garantidamente, mais de cem anos, o baú e a mesa da cozinha grande que nunca era usada.
E mais do que tudo isto, guardo as minhas memórias.
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