Referir no post anterior a palhada que o Ti João C. dava às vacas, não foi por acaso.
É que tanto ele como a tia E., foram das pessoas mais queridas da minha infância.
Ela, cheia de energia, sempre a falar alto, curvada pelos anos, com os poucos dentes que tinha sempre à mostra ( nunca percebi se era um sorriso, um tique ou uma careta provocada pela dor dos joanetes).
Calçava sempre sapatos uns três números acima. Era generosa e tratava os sobrinhos-netos como se fossem seus netos.
Ele, homem alto e de poucas falas, muito sereno e lento nos gestos, tinha uma calma contagiante. Não ria alto mas tinha sempre um sorriso e um afago para a pequenada. Eram "primos carnais" mas tiveram três filhos "sãos e escorreitos".
A casa, tinha um grande pátio de terra batida e por esta altura, férias grandes, quando nos juntávamos netos e sobrinhos-netos, era uma brincadeira pegada à sombra do enorme sobreiro. Cheirava a rosas, pão quente e bosta de vaca. A minha avó, irmã da Tia E. ia lá muitas vezes costurar na velha máquina de costura e enchia a canela de barco ( as coisas de que eu me lembro) à mão.
A casa de costura era grande. Tinha uma cama de ferro com uma colcha de retalhos feita pela tia, as talhas do azeite, a das azeitonas ( conduto frequente ), a arca do trigo, outras arcas onde guardava as mais variadas coisas e nas paredes, tinha penduradas maçarocas e o sobretudo do tio. A máquina, ficava mesmo em frente da janela por onde podíamos entrar e sair porque era baixa. Lembro-me com perfeição do quadro com pássaros com uma moldura muito brilhante, que agora penso que seria de madrepérola.
À hora do lanche, havia pão caseiro com banha ( a que eu chamava manteiga branca) ou com alguma compota que a tia tivesse feito. Quando a víamos chegar com um prato tapado com a ponta do avental, já sabíamos que também havia bolachas, biscoitos e rebuçados de meio tostão, embrulhados em papel às bolinhas, cada sabor com sua cor.
Enfim, era uma casa farta.
Albergou sobrinhos casados à pressa e amigos recém chegados das ex-colónias.
Quando o tio ia tratar as vacas, juntavamo-nos todos à volta da pia redonda feita por ele e viamo-lo preparar a palhada com muita atenção: palha, sêmeas de trigo que sobravam da peneira da tia, milho ou outro cereal. Juntava água e misturava tudo já com a barulheira das bichas que berravam e tocavam os enormes chocalhos já a intuir a proximidade da refeição. Foi lá, que vi pela primeira ( e única ) vez, nascer um bezerro e fiquei espantada quando o vi levantar-se quase de seguida.
Quando ficava fresco, lá íamos numa gritaria para a grande figueira que por esta altura estava pejada de figos-rei. Os meninos subiam mas as meninas, não. Ficavamos no chão porque tínhamos vestidos e mostrávamos as cuecas. E era feio. Eram dias de brincadeira e alegria.
Com o tempo, ai o tempo, tudo mudou.
Os tios morreram e dois dos seus filhos também.
Agora, os portões sempre fechados, guardam apenas as minhas lembranças e o que os ratos já desistiram de roer. Debaixo do telhado da adega, que já caiu, jaz o carro de bois com varais de pau verticais e onde eu gostava de me empoleirar, as ferramentas do tio, que era pedreiro, carpinteiro e mais umas sete artes para alem de boieiro, os tonéis, o lagar, a prensa, a lareira onde a tia curava os enchidos e o que restava, à sua morte , do que lá armazenava.
O pátio, gigantesco, pelo menos na minha memória de criança, já deve ter mato. Das janelas, já saem silvas, sinal de invasão interior. A figueira, tapada de mato, já não dá figos ( era agora). Só as rosas, uma ou outra, teimam em espreitar por entre as ervas que tapam a roseira. Se passar a pé ainda lhes sinto o cheiro. Se passo de carro, não olho. Faz-me pena. E saudade.