A casa da tia D., e a própria tia D., fazem parte das coisas boas da minha infância(e não só).
como todas as casas de pobres, a dela tambem não se fez toda de uma vez. Foi-se fazendo. Devagar. Vivia-se devagar. Talvez por isso a tia D. morreu há pouco com quase cem anos.
Mas a casa, sempre inacabada, tinha particularidades que eu não via em mais nenhuma casa. Como os besouros gigantes que faziam buracos na parede nua de adobes por cima da lareira. Eu gostava daquilo. Faziam barulho e companhia. Durante o dia escondiam-se nos buracos e ninguem dava por eles. No quintal, havia um buraco para a rua por onde saia a água das lavagens. Parece que a estou a ver a lavar a loiça num alguidar de zinco e depois tomar balanço o apontar mesmo na direção do buraco. Não havia saneamento. Ia tudo para a rua. Mas o que havia na casa da tia D. que mais me encantava era um quarto sem janela. Eu nunca tinha visto um quarto sem janela. Apesar de, na verdade, eu só conhecer casas de pobres e que levavam uma vida a ser quase acabadas. Quase, porque nunca o eram completamente. Ora faltava o forro e as telhas estavam à mostra, ora levavam um pavimento de cimento em cima do chão de terra batida embebida em óxido de ferro, ora se punham umas portas a substituir as cortinas de chita, ora se comprava uma cama de ferro em quinta mão para o lugar do estrado com colchão de camisas de milho ou um "guarda comidas" comprado na feira de Rio Maior ou outra traquitana qualquer, mas faltava sempre alguma coisa. Mas eram alvas e altivas come se fossem palácios.
Dessas casas, já não há. Porque os donos morreram e elas morreram com eles, ou porque os filhos ou netos lhes rasparam a cal e as vestiram de azulejos pirosos. Por fora e por dentro.
A casa da tia D. continua de pé. Já com alguma "modernidade" que a tia foi acrescentando mas ainda assim me parece a mesma.
Mas agora foi vendida! De certeza vai ser destruída, e com ela mais um marco da minha infância.
Ficam as lembranças.
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