São duas flores unidas
"São duas rosas nascidasTalvez do mesmo arrebol,
Vivendo,no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol."
"Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.
Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção."
Miguel Torga
Há poucos dias passei na casa dos meus avós maternos. Tenho memórias daquela casa, que não sendo todas muito boas, tambem não são más e fazem parte da minha história. Ver casas abandonadas deprime-me. Ver abandonada uma casa onde já vivi tantos momentos, mais ainda. Toda a casa está em mau estado. Mas a casa do forno, a que me trás mais memórias, já não tem um bocado do telhado. Já não é a casa do forno da avó T. Era pequena, muito humilde, mas a sala de visitas da avó. Tinha um "patim" na frente, em cimento, e, de um lado da porta estava a pequena cadeira onde a avó se sentava a costurar com o pequeno açafate aos pés. Do outro lado, o grande alguidar de barro onde ela amassava o pão. Atrás da porta de zinco ondulada e pintada de verde, o saco com a farinha por peneirar que o moleiro trazia à quarta feira e na parede uma saca de serapilheira dobrada em forma de capuz pendurada por cima do chapéu de chuva do avô C. Na parede do lado direito, destacava-se a grande cantareira, sem vestigios de tinta ou outro material, muito ao natural e com ar de muito velha. Nos cântaros, dois, água das Frazôas. Da fonte de mergulho onde toda a aldeia ir buscar água pra beber, e com a que saía continuamente, as mulheres lavavam a roupa logo ali, numa pedra, com água corrente. Os eucaliptos que plantaram lá perto secaram-na pra sempre há muitos anos. Ao lado da cantareira, a pequena arca onde guardava o pão. Pintada de verde, já desgastada e encimada pela prateleira de madeira tambem pintada de verde e com umas poleias lindas em ferro forjado que eu achava encantadoras. Na parede em frente à porta, o louçeiro. Com pouca loiça, onde a avó guardava a mercearia e o fermento para a proxima cozedura. Talvez por isso, quando se abria a porta, cheirava muito a azedo. Ao lado, uma mesa pequena, baixa, tambem verde ou quase, e uma cadeira tambem pequena que era onde, invariavelmente, o avô se sentava pra comer. Na parede do lado esquerdo, ao fundo, a lareira. Grande e onde a avó tinha uma fornalha toda de barro, a fazer lambrar uma mini casa berbere. No inverno sempre acesa e com uma cafeteira com água sempre a jeito de fazer café pra quem aparecesse. Ao lado, a vassoura de urze encostada à parede. No grande pilar de madeira encostava-se a avó, rainha no seu tosco trono. Ao canto do lado esquerdo, o lavatório de ferro. Quando dormia em casa deles, era ali que jantávamos. Depois da janta, o avô adormecia com os braços em cima da mesa e a avó encostada no grande tronco, encostava a palma da mão à face a adormecia tambem. Eu, sozinha, ficava ali a olhar para as ripas do telhado, negras do fumo, sem saber como me portar. Se os acordava, se ficava ali calada a vê-los dormir. Penso que o sono da minha avó era leve porque não demorava muito e lá se levantava ela, candeia na mão, pra me acompanhar ao quarto. Era mulher de poucas falas, pouco riso e um bigode que lhe tornava os raros sorrisos ainda mais apagados. Levava-me ao quarto e, já depois de eu adormecer, aparecia como um fantasma, camisa de noite muito larga, candeia na mão e cabelo solto, muito comprido e tão branco como a camisa. Compunha-me a roupa, num raro momento de ternura e eu fingia que dormia pra não estragar o momento. Nunca compreendi aquele azedume, aquela permanente tristeza, aquele distanciamento. Mais tarde compreendi. A avó nunca teve mãe. Morreu quando ela nasceu. Quero pensar que era essa a razão. Já o avô, não sendo meigo, era muito brincalhão. Sempre alegre. Parece que estou a vê-lo. De calças de cotim cinzentas, camisa de têvê branca muito encardida no colarinho, colete escuro e relógio de bolso com corrente de prata. Na cabeça um barrete preto e nos lábios sempre um sorriso sem dentes. Nem um dente. Mas ainda assim, comia de tudo como todos nós. Aos domingos e dias santos, trocava o barrete pelo chapéu e compunha a farpela com uma bengala que ele usava com destreza. Era um pândego, o avô C.
Doeu-me ver a casa assim, já sem ser casa, tão morta como eles.
E hoje, o atual dono, o filho, meu tio, morreu. É a vida e a morte. Sempre a girar.